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Nos Ășltimos anos, os arqueĂłlogos que trabalham na Serra da Capivara, no PiauĂ (um dos complexos prĂ©-histĂłricos mais importantes do Brasil, famoso pelas belas pinturas nas rochas), aram a enfrentar uma nova dor de cabeça.
Tanto lĂĄ quanto em outros lugares do PaĂs e do mundo, lascas de pedra simples, que sobravam do processo de fabricação de ferramentas, costumam ser um bom indĂcio da presença de antigos seres humanos. O problema Ă© que outra espĂ©cie de inteligĂȘncia sofisticada tambĂ©m anda produzindo lasquinhas muito parecidas hĂĄ milĂȘnios na regiĂŁo. Como saber quem fez o quĂȘ?
O culpado por embolar o meio de campo arqueolĂłgico se chama Sapajus libidinosus: Ă© o macaco-prego-amarelo. Os dados indicam que esses primatas andam produzindo lascas de pedra hĂĄ pelo menos 3 mil anos, e Ă© possĂvel que isso esteja acontecendo hĂĄ mais tempo ainda.
Um estudo publicado este ano (1) mostrou que outra espécie muito parecida, o Sapajus xanthosternos (macaco-prego-do-peito-amarelo), presente no norte de Minas Gerais, também acaba criando as lasquinhas de vez em quando.
As brincadeiras sobre uma suposta entrada desses bichos na Idade da Pedra Lascada são inevitåveis, mas a piada pronta contém uma imprecisão. As lascas podem ter uma beirada cortante, como a produzida pelos ancestrais da humanidade, mas os macacos não as usam para cortar nada, nem as criam intencionalmente.
Elas sĂŁo sĂł um subproduto de outras prĂĄticas adotadas pelos âpregosâ, como seus estudiosos costumam chamĂĄ-los. Mas isso nĂŁo Ă© motivo para minimizar a inteligĂȘncia deles â muito pelo contrĂĄrio.
Num trabalho de pesquisa constante, que vem ganhando força nos Ășltimos 20 anos, cientistas do Brasil e de outros paĂses estĂŁo documentando a grande versatilidade tecnolĂłgica e comportamental dos macacos-pregos.
Eles podem nĂŁo fabricar os prĂłprios instrumentos, mas usam diversos recursos da natureza â por exemplo, pedras, raĂzes e galhinhos â como ferramentas para explorar seu ambiente, descolar comida mais nutritiva e atĂ© paquerar.
Tudo indica que essas capacidades são transmitidas culturalmente de geração em geração, podem se transformar ao longo do tempo e variam dependendo das populaçÔes de cada espécie.
Isso significa que, Ă sua maneira, esses bichos tĂȘm se mostrado exemplos valiosos para a compreensĂŁo de como a inteligĂȘncia e a cultura evoluem â tĂŁo importantes quanto primatas bem mais badalados, como os cĂ©lebres chimpanzĂ©s e bonobos, primos de primeiro grau do Homo sapiens. Nada mau para um macaco quase vira-lata, que dĂĄ as caras atĂ© mesmo em bairros mais arborizados de cidades Brasil afora.
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Martelo e bigorna
A primeira pista de que algo bastante incomum andava acontecendo com os macacos-pregos do Brasil veio de uma população que vivia em semiliberdade no Parque EcolĂłgico do TietĂȘ, na capital paulista. Ă primeira vista, a coisa nĂŁo podia ser mais simples: um sistema que os cientistas costumam apelidar de âmartelo e bigornaâ.
O animal emprega uma superfĂcie maior e bem dura, que faz o papel de bigorna, e um objeto menor e igualmente duro que ele consiga segurar, que funciona como martelo. Em geral, tanto a bigorna quanto o martelo sĂŁo pedras (embora, no primeiro caso, raĂzes duras tambĂ©m possam servir). Entre uma coisa e outra fica aquilo que ele pretende quebrar â no caso dos macacos-pregos do parque paulistano, coquinhos.
A atividade é mais complicada do que parece, a começar pelo fato de que o animal estå combinando o que, na pråtica, são duas ferramentas diferentes para atingir seu objetivo.
Ă algo que envolve, entre outras coisas, alguma compreensĂŁo intuitiva das propriedades fĂsicas dos trĂȘs materiais envolvidos e de como usĂĄ-los na ordem espacial e temporal correta. Os primatĂłlogos jĂĄ tinham visto algo parecido, sĂł que entre chimpanzĂ©s (cujo grupo mais famoso por usar a combinação âmartelo e bigornaâ vive na Costa do Marfim).
A semelhança parecia promissora, mas os pregos do parque nĂŁo avam de um catadĂŁo de indivĂduos resgatados do trĂĄfico de animais silvestres. A rigor, eles poderiam ter inventado aquele mĂ©todo para escapar do tĂ©dio da vida confinada no parque (outros animais da espĂ©cie jĂĄ haviam sido observados usando ferramentas em situaçÔes de cativeiro).
A grande questĂŁo era saber se algo parecido acontecia e se mantinha ao longo do tempo em populaçÔes naturais. E o Ășnico jeito de bater esse martelo, com perdĂŁo do trocadilho, era ir a campo e gastar muitas horas de observação, âstalkeandoâ os bichos.
Ă o que tem feito toda uma geração de cientistas, capitaneados por Eduardo Ottoni e PatrĂcia Izar, especialistas em comportamento animal do Instituto de Psicologia da USP. Eles e seus colegas e alunos se espalharam pelo PaĂs e flagraram uma grande variedade de tradiçÔes culturais associadas ao uso de ferramentas. Hoje existem exemplos bem-documentados no PiauĂ (em mais de um local), no CearĂĄ, na Bahia e em Minas Gerais, entre outros lugares.
Normalmente Ă© algo que ocorre em ambientes de vegetação mais aberta, como o cerrado e a caatinga, e envolve os chamados macacos-pregos robustos, do gĂȘnero Sapajus. E eis que a prĂĄtica de âmartelo e bigornaâ de fato ocorre em populaçÔes naturais, como as da Serra da Capivara e as de GilbuĂ©s, no sul do PiauĂ.
âEles ajustam o tamanho da pedra e o esforço para cada tipo de recurso alimentar. Modulam o movimento do corpo, com menor ou maior amplitude, dependendo da dureza da casca ou caso o coquinho jĂĄ tenha começado a abrirâ, explica Izar. Os âpregosâ tambĂ©m usam a tĂ©cnica para quebrar castanhas-de-caju. âA percepção das caracterĂsticas dos materiais e de como eles precisam ajustar o prĂłprio comportamento Ă© incrĂvelâ, acrescenta o pesquisador.
Mas a lista de habilidades desses animais Ă© muito mais longa. Em territĂłrio cearense, no Parque Nacional de Ubajara, Tatiane Valença e seus colegas da USP flagraram uma combinação de duas ferramentas, feitas de materiais diferentes, servindo a propĂłsitos complementares â algo, mais uma vez, tĂpico de chimpanzĂ©s.
Nesse caso os macacos-pregos, interessados em se deliciar com aranhas, combinam o uso de pedrinhas e gravetos. Com as pedras, cavoucam a terra para facilitar o o Ă toca dos aracnĂdeos, enquanto os pedacinhos de pau servem para tirar o inseto e sua ooteca (o aglomerado de ovos do bicho) do buraco. Os gravetos tambĂ©m podem ser utilizados para caçar outros pequenos animais, como escorpiĂ”es.
Ainda no quesito âcaptura e preparo de invertebradosâ, um estudo (2) de outro pesquisador da USP, Henrique Rufo, revelou uma tradição culinĂĄria destinada a melhorar o sabor de gafanhotos parecidos com bichos-paus. Esses insetos costumam comer vegetais tĂłxicos que lhes conferem um gosto horroroso, o que pode ajudar a afastar seus predadores.
Mas os macacos aprenderam a arrancar o trato digestivo dos gafanhotos antes de comĂȘ-los, removendo, assim, a principal fonte do sabor desagradĂĄvel. Os filhotes levam mais tempo para realizar a operação e vĂŁo ficando mais hĂĄbeis com o ar do tempo â um indĂcio de que se trata de um comportamento aprendido e transmitido culturalmente.
As pedrinhas tambĂ©m podem ser utilizadas durante a sequĂȘncia de comportamentos rituais que costuma caracterizar o acasalamento dos S. libidinosus. Entre os macacos-pregos, Ă© comum que o processo comece com as fĂȘmeas tentando chamar a atenção dos machos, erguendo as sobrancelhas e dando âsorrisosâ para os possĂveis parceiros.
TambĂ©m na Serra da Capivara, elas incorporaram o arremesso de pedrinhas nos machos a esse processo â ao que parece, o objetivo era fazer com que os alvos se dessem conta da presença delas.
Outro resultado bastante consistente das mais de duas décadas de pesquisa tem a ver com os mecanismos pelos quais os bichos dominam as tecnologias de cada comunidade.
Tudo indica que um elemento importante Ă© o alto nĂvel de tolerĂąncia dos adultos com os filhotes â que ficam metendo o bedelho toda vez que veem um macaco adulto manipulando com habilidade seu kit de pedras ou pauzinhos. Assim, eles conseguem usar o comportamento dos adultos como modelo para dominar a tĂ©cnica.
Também jå estå claro que o uso de ferramentas aumenta significativamente a disponibilidade de nutrientes para os bichos. Em Gilbués, por exemplo, uma anålise (3) revelou que os pregos consomem 50% mais calorias nos dias em que conseguem quebrar coquinhos usando pedras.
AlĂ©m disso, nesses mesmos dias, a ingestĂŁo de proteĂnas Ă© menos variĂĄvel do que nos demais, ficando sempre num nĂvel adequado. Em suma, dominar a tecnologia quebra-coquinho compensa.
E, como os dados arqueolĂłgicos indicam, Ă© algo que compensa jĂĄ hĂĄ pelo menos alguns milhares de anos. Mas isso nĂŁo significa que a prĂĄtica tenha ficado inalterada por todo esse tempo. Conforme mostrou um estudo (4) coordenado pelo primatĂłlogo Tiago FalĂłtico, pesquisador da USP e da ONG Neoprego, a escolha de materiais para o mĂ©todo martelo e bigorna sofreu variaçÔes ao longo dos milĂȘnios.
As pedras mais antigas, de 3 mil anos de idade, tĂȘm tamanho modesto, similar ao que os macacos atuais usam para quebrar sementes pequenas. Entre 2.500 anos e 600 anos atrĂĄs, as pedras aumentam de tamanho e lembram aquelas que os bichos de hoje preferem para quebrar castanha-de-caju e jatobĂĄ.
Depois disso, as pedras pequenas voltam a predominar. A motivação para esse vaivĂ©m â possĂveis alteraçÔes na disponibilidade de certos frutos, ou mesmo âmodasâ nos grupos da espĂ©cie â ainda nĂŁo estĂĄ clara.
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O segredo dos pregos
Existem cerca de 140 tipos de macacos no Brasil (a conta inclui tanto espĂ©cies quanto possĂveis subespĂ©cies â nem sempre Ă© simples diferenciar uma coisa da outra). Isso dĂĄ mais ou menos 20% de toda a diversidade de primatas do mundo.
E significa que talvez haja algo de realmente especial no punhado de espécies de macacos-pregos que acabou seguindo o caminho da evolução tecnológica e cultural. A grande pergunta é: como eles fizeram isso? Qual é seu segredo?
Ă nesse ponto que as semelhanças com a trajetĂłria da evolução humana começam a parecer grandes. Henrique Rufo aponta, por exemplo, que as outras dezenas de primatas brasileiros, que sĂŁo tĂpicos de ambientes com floresta tropical fechada, nĂŁo tĂȘm nem de longe o mesmo interesse pelo uso de ferramentas que as variantes mais nerds de pregos do cerrado e da caatinga.
O pesquisador lembra que, nesses ambientes de vegetação aberta e diferenças considerĂĄveis entre a estação chuvosa e a estação seca, os bichos precisam lidar com a relativa falta dos alimentos mais saborosos e nutritivos â as frutas, claro, estĂŁo no topo da lista â durante longos meses do ano. AlĂ©m disso, os frutos que continuavam disponĂveis nesse tipo de ambiente muitas vezes tĂȘm invĂłlucros duros, difĂceis de abrir no muque ou no dente.
Assim que algumas populaçÔes de pregos começaram a deixar a sombra da mata fechada e se aventurar por ĂĄreas mais abertas, era preciso se virar para achar fontes alternativas de sustento, seja acima ou abaixo do solo (jĂĄ que raĂzes e tubĂ©rculos nutritivos tambĂ©m se tornaram parte importante do cardĂĄpio dos macacos).
âUma coisa que a gente tem percebido Ă© que eles am uma parte bem considerĂĄvel do tempo no solo, algo que quase nunca acontece com outros macacos sul-americanosâ, diz Rufo.
Hå uns 4 milhÔes de anos, uma coisa bastante parecida estava acontecendo com outros primatas, de porte bem maior que o dos pregos, do lado de lå do Oceano Atlùntico. Os detalhes exatos ainda são incertos, em parte porque estudar os poucos fósseis dos ancestrais da humanidade då um trabalho do cão e sempre
produz controvérsias.
Mas o fato Ă© que, por volta dessa Ă©poca, hominĂnios como os Australopithecus afarensis, a espĂ©cie da famosa fĂȘmea Lucy, tambĂ©m andavam se aventurando cada vez mais no chĂŁo de ambientes abertos como as savanas â enquanto seus primos, os ancestrais dos chimpanzĂ©s e gorilas atuais, continuavam ando um bom tempo nas ĂĄrvores da floresta tropical.
E isso levou a um uso cada vez mais intensivo de ferramentas e Ă diversificação da dieta, incluindo atĂ© um possĂvel consumo de raĂzes e tubĂ©rculos.
Ă claro que tudo isso envolve um certo âdilema de Tostinesâ, como brinca Rufo. SerĂĄ que os macacos-pregos ficaram progressivamente mais espertos porque essas caracterĂsticas foram favorecidas pela seleção natural durante a colonização do cerrado e da caatinga, ou teriam sido a inteligĂȘncia e a flexibilidade iniciais dos bichos que lhes deram um empurrĂŁozinho rumo a novos ambientes?
Ă bem possĂvel que as duas teses estejam corretas. De um lado, os macacos-pregos parecem ter sido consideravelmente bem dotados quando o assunto Ă© cĂ©rebro â neles, o ĂłrgĂŁo Ă© proporcionalmente maior, em relação ao tamanho do corpo, do que na maioria dos outros primatas das AmĂ©ricas. E a dieta onĂvora, nĂŁo exclusivamente focada em vegetais, tambĂ©m pode ter ajudado na exploração de novos recursos.
Pequenas vantagens iniciais, como essas, podem ter se autorreforçado com os novos desafios e atĂ© pela competição com outras espĂ©cies versĂĄteis nos ambientes abertos, num processo de bola de neve que produziria, no fim das contas, os âpregosâ que conhecemos hoje.
Nada disso significa, porĂ©m, que os bichos estejam âentrando na Idade da Pedraâ e tenham começado a subir uma suposta escadinha similar Ă nossa, que terminaria com a macacada erguendo condomĂnios e usando a internet.
Na evolução dos seres vivos, cada caso Ă© um caso, e as trajetĂłrias nĂŁo costumam se repetir. Mas alguns paralelos continuam valendo e trazem um vislumbre de padrĂ”es mais gerais. Cabeça versĂĄtil + novos desafios ambientais: nĂŁo parece uma equação das mais implausĂveis para as origens da inteligĂȘncia e da cultura. Seja na Ăfrica, no Brasil, na Terra como um todo â ou, quem sabe, atĂ© em outros planetas por aĂ.
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Fontes (1) âFlake production: A universal by-product of primate stone percussionâ, T Proffitt e outros, 2025; (2) âToxic tasting: how capuchin monkeys avoid grasshoppersâ chemical defensesâ, H Rufo e outros, 2024. (3) âStone tools improve diet quality in wild monkeysâ, P Izar e outros, 2022; (4) âThree thousand years of wild capuchin stone tool useâ, T FalĂłtico e outros, 2019.
Fonte: abril